“Olhos nos olhos, quero ver o que você diz. Quero ver como suporta me ver tão feliz…” (Chico Buarque)
Quando chegar o momento certo, você acordará e seu primeiro pensamento não será ele – surpreendentemente, não será ele até o fim do dia, pelo resto dos seus dias. Seus olhos não acordarão inchados e não terá o ímpeto de abrir a gaveta do criado-mudo para olhar a foto dele. Em seguida, pela primeira vez depois de muito tempo, você conseguirá sentir o calor do sol sobre sua pele – prestará atenção em si mesma.
Ao sair da cama, você fará questão de colocar primeiramente o pé direito no chão e, ensaiando uma coreografia, irá se dirigir ao banheiro cantarolando uma música antiga, não sem antes parar em frente ao espelho, do qual tanto fugira nos últimos tempos. Segura de si, voltará a se achar bonita, a gostar do reflexo que vê – terá então retomado a jornada ao encontro de si mesma, de quem havia se perdido.
Em seguida, você vai se sentar à mesa do café e olhará sorrindo nos olhos de sua mãe, que, espantada, constatará que a filha, daquela vez, tinha realmente acordado e saído inteira da cama. Conversarão sobre banalidades e até falarão da vida alheia, maldosamente, rindo juntas, com cumplicidade sincera. Apesar do nó na garganta, sua mãe será forte o bastante para não deixar transbordar em lágrimas toda a felicidade que mal conseguirá conter dentro de si.
Chegando ao trabalho, você sustentará o olhar, cumprimentará os colegas com voz viva e eles poderão enfim sentir sua presença. O tempo não se arrastará, suas tarefas não a chatearão e conseguirá prender a atenção ao que é útil. Você voltará a ser gentil, a perceber-se como parte de um todo, até mesmo rirá quando derramar café na calça nova. À hora do almoço, sentirá fome de fato, quererá comida de verdade e sentirá os sabores dos alimentos, como há muito já esquecera.